Por ANA CAROLINA ASSUMPÇÃO
DURANTE MOMENTOS DE CRISE, é possível observar que grupos de pessoas se unem com o propósito de ajuda mútua. Desde os primeiros meses da pandemia de COVID-19 não foi diferente. No mundo todo surgiram exemplos de pessoas que mesmo com medo de contágio trabalharam para mitigar o impacto do vírus na sociedade. Um exemplo disso foi o trabalho que um grupo de voluntários desempenhou no Complexo do Alemão, um conjunto de favelas, localizado no Rio de Janeiro, Brasil. O grupo, chamado Gabinete de Crise do Complexo do Alemão, organizou ações de conscientização e prevenção do vírus, além de distribuir alimentos e materiais de higiene e limpeza. De abril a setembro de 2020 o grupo, composto por 32 voluntários, beneficiou mais de 50 mil pessoas nas comunidades.
Para melhor contextualizar, é importante informar alguns dados sobre o local onde o Gabinete de Crise atuou. O Complexo do Alemão é composto por 13 favelas e ocupa uma área de quilômetros quadrados. Segundo o censo oficial, possui cerca de 69 mil moradores, cuja renda gira em torno de 245 dólares mensais. Esse trabalho incrível marcou a vida dessas pessoas e serviu de inspiração para outros grupos que replicaram a ação em outras comunidades da cidade. E para que isso tudo acontecesse, o papel de algumas mulheres foi fundamental, desde a concepção, planejamento e ação do projeto, como veremos a seguir.
Camila Santos e o Mulheres em Ação no Alemão
Camila Santos vem de uma família há muitos anos estabelecida no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. Como ela gosta de ressaltar, é “raiz do Complexo”, uma vez que sua mãe nasceu em casa, na mesma comunidade. O senso de comunidade também é herança familiar, pois sua mãe sempre esteve envolvida em movimentos sociais na favela, que ela acompanhava, porém sem muito envolvimento. Camila conta que decidiu levantar sua voz e organizar ações na luta por direitos humanos após o Estado, no 2010, considerar a Favela da Skol, onde morava, como área de risco, remover moradores e demolir as casas. Como compensação, alguns moradores foram cadastrados para receber um auxílio moradia, o aluguel social no valor de R$400,00 (U.S.$79) mensais enquanto aguardavam a construção de unidades habitacionais no mesmo lugar.
Camila assistiu durante anos o governo não cumprir suas promessas e não construir as novas casas. Ela também percebeu que a maioria dos chefes de família eram mulheres negras que lutavam para sustentar suas famílias. Como o apoio financeiro do governo era insuficiente para cobrir o aluguel dos moradores despejados, além de nem sempre ser pago em dia, essas famílias foram espalhadas na comunidade ou transferidas para as áreas mais pobres. É bom frisar que em junho de 2022, as duzentas famílias retiradas da Favela da Skol ainda aguardam suas novas casas e ainda recebem o mesmo valor de indenização que lhes foi oferecida quase doze anos antes.
No processo de exigir do Estado a restituição do que lhes foi tirado, Camila e outras mulheres estreitaram seus laços de apoio mútuo. Como nem todas as famílias recebiam auxílio-moradia, com o passar do tempo, Camila viu “o choro se transformar em grito”. Ela fundou o Mulheres em Ação no Alemão (MEAA, Mulheres em Ação no Alemão) em 2016 para atender essa questão e outras demandas. Segundo o site da organização, “Mulheres em Ação no Alemão tem a missão de acabar com a violência contra a mulher e contribuir para o empoderamento das mulheres e suas famílias, colaborando assim para fortalecer sua autonomia e garantir seus direitos básicos”. Camila insiste que as pessoas que vivem em favelas devem conhecer seus direitos para que possam usufruí-los e exigir que o Estado faça sua parte. Por meio da advocacia habitacional, ficou conhecida como Camila Moradia.
Com o agravamento da pandemia em 2020, e as medidas restritivas, o número de famílias atendidas saltou de 270 para mais de 400 durante os primeiros meses de 2020. Mais pessoas enfrentavam dificuldades que iam além da financeira, agravados pelo alto índice de desemprego. Camila relata que os pedidos de ajuda aumentaram sistematicamente com a demissão em massa de trabalhadores ligados a setor de serviços (predominantemente negro e pobre), e o fechamento das escolas. Junto com a fome, os casos de violência doméstica também aumentaram. E então, segundo Camila, mais uma vez, “o grito virou berro”. A ativista lembra que ouvia na televisão o Governo do Estado do Rio de Janeiro falar sobre a criação de um gabinete de crise para atuar no combate ao vírus. O problema é que não havia ações concretas ou planejamento que contemplassem as necessidades da população mais pobre. A partir desse escalonamento, e ciente de que a situação dessas famílias iria piorar, a Camila Moradia então decidiu convocar coletivos que já atuavam no Complexo do Alemão, e numa provocação no Twitter, nomeou o novo grupo como “O Gabinete de Crise do Alemão”.
Além de ser quem percebeu a movimentação na comunidade, e buscou parcerias para agir, Camila também foi responsável por trabalhar no mapeamento da comunidade, identificando áreas mais vulneráveis, além de pegar pesado e distribuir as cestas básicas. As entregas, segundo ela, eram as partes mais difíceis, quando ela esteve em contato com a miséria: casas feitas de papelão, ao lado de chiqueiros, sem quaisquer eletrodomésticos e sem saneamento básico. Algumas pessoas agradeciam pela ajuda e diziam que por conta da pandemia estavam se alimentando melhor. Todo esse trabalho teve um custo para a ativista que mais de um ano depois não consegue falar sobre tudo o que viveu. Ela ainda está traumatizada, e somente em 2022 buscou ajuda psicológica. Antes disso, Camila dizia que sua terapia eram seus três filhos, que a acompanham na luta, e estavam com ela durante as ações do Gabinete de Crise. Quando pergunto sobre o que mudou depois da pandemia, Camila responde: “Antes eu tinha Bacharel em Favela, agora eu tenho Doutorado”.
Apesar de todo trabalho difícil, o esforço de Camila não foi em vão. Em novembro de 2021 ela recebeu o Prêmio Front Line Defenders, da organização homônima baseada em Dublin, Irlanda. Um detalhe importante é que sua inscrição foi pensada e incentivada por outra mulher negra, Renata Trajano. Renata é ativista de direitos humanos, articuladora e parte do Coletivo Papo Reto, e um dos integrantes do Gabinete de Crise. Amiga pessoal de Camila, Renata também trabalhou no mapeamento da comunidade, triagem das famílias, e distribuição dos alimentos. Sobre os motivos que a levaram a indicar Camila, ela diz: “Pensei na Camila põe tudo o que ela representa como Mulher Preta, mãe solo, e como liderança. A indicação ao prêmio foi para ela entender o quanto é potência, e que representa tantas de nós. Foi com muito orgulho que a indiquei, e não sabia se iríamos vencer. Mas . . . ela ganhou!” Camila Moradia foi a primeira representante das Américas e primeira pessoa do Brasil a receber a condecoração. Para ela, uma mulher preta e favelada ser a vencedora, foi “uma honra imensa, e só reforça dentro de mim que estou no caminho certo e do lado certo da história”.
Assim como uma outra mulher negra a indicou a premiação, Camila fez questão de homenagear outras mulheres que também trabalham em benefício de suas comunidades. Renata Trajano e outras 19 mulheres receberam os troféus em reconhecimento à luta por direitos humanos pelas mãos de Camila, numa cerimônia emocionante. Para concluir, a ativista diz que o reconhecimento fortalece sua luta e a motiva a seguir.
O Coletivo Papo Reto
Assim como o Mulheres em Ação, o Coletivo Papo Reto começou como uma resposta ao descaso do governo com a população e pela decisão de uma mulher negra em (re)agir. Em 2013, fortes chuvas caíram sobre a cidade do Rio de Janeiro, e o Complexo do Alemão foi especialmente atingido. Durante as chuvas, uma pedra rolou no alto da casa do irmão de Renata Trajano, e ele não conseguiu suporte da Defesa Civil para prestar socorro. Renata então pediu que uma amiga publicasse o caso no Twitter a fim de buscar ajuda e de evitar uma tragédia maior do Alemão. O tweet virou viral. Fundado oficialmente em 2014 por Renata Trajano e outros, o Coletivo Papo Reto utiliza as redes sociais para chamar a atenção do público sobre problemas que eles enfrentam nas favelas. Ao longo do tempo, o trabalho do coletivo atraiu a atenção das Nações Unidas e de outras organizações internacionais.
Tragédias infelizmente marcaram o grupo que precisa trabalhar para mitigar os efeitos e prestar apoio à população. A morte do menino Eduardo de Jesus, de dez anos, em 2015, foi um divisor de águas para o coletivo. Eduardo estava brincando na frente de sua casa quando a polícia supostamente confundiu seu celular com uma arma e o matou. Embora Renata Trajano quisesse chorar e lamentar o assassinato de uma criança, ela foi impelida a trabalhar duro e mediar a revolta da população com a polícia militar. O Papo Reto também contesta as narrativas da grande mídia sobre o que acontece nas favelas. Desde sua fundação, o grupo denuncia violações de direitos humanos e continua mobilizando a população para ações voltadas à proteção e fortalecimento da comunidade.
Lana de Souza e a Importância do Trabalho nos Bastidores
Lana de Souza também nasceu no Complexo do Alemão, e a partir de 2020 passou a dividir seus dias entre a comunidade e a cidade de Maricá, interior do Rio de Janeiro. Formada em jornalismo, Lana passou a integrar o Coletivo Papo Reto desde a sua fundação. Inicialmente, por sua formação profissional, Lana de Souza era a Coordenadora de Comunicação do grupo, responsável por pensar ações sociais e gerar conteúdo de mídia. Com o fortalecimento do grupo, Lana passou a ser responsável pela parte administrativa como Diretora Presidenta. É ela quem responde pelas contas, e organização e distribuição de tarefas, folha de pagamento, entre outros. Diferente do Mulheres em Ação, os membros do Coletivo Papo Reto são contratados para que possam se dedicar integralmente ao trabalho em prol dos direitos humanos.
Durante a pandemia e com as ações do Gabinete de Crise, Lana foi a responsável pelo aluguel do galpão onde as doações eram recebidas, pelo controle e acompanhamento das distribuições. Era ela quem fazia o planejamento de quando e como tudo iria acontecer, e trabalhava para que os outros voluntários conseguissem realizar suas atividades. Lana afirma que não ia para as ações na rua, pois “estava o tempo inteiro focada em garantir uma logística de qualidade pra equipe e para as famílias atendidas”. Camila Santos carinhosamente a chama de “Big Boss” e diz que o trabalho grandioso que realizaram se deve também ao esforço de Lana no backstage. E justamente por estar “em off”, como ela costuma dizer, Lana não aparece em fotografias divulgadas pelo grupo, o que pode dar a falsa ideia de pouco trabalho. E muito pelo contrário, uma vez que por trás de uma ação de sucesso existe muito trabalho de planejamento. No caso do Gabinete de Crise, gerenciar um trabalho com essas proporções que distribuiu mais de 110 mil itens precisa de um gerenciamento competente e preciso. É como dizem: “Por trás de uma grande ação está uma grande mulher”.
Atualmente Lana tem um canal no YouTube que leva seu nome, onde compartilha suas vivências. Afinal, como boa jornalista, ela gosta de contar histórias e dar dicas financeiras e de organização pessoal. Segundo ela, esse é um espaço onde ela pode se expressar e tratar de assuntos fora do seu cotidiano de trabalho pelos Direitos Humanos. A comunicadora/Big Boss também foi uma das mulheres que Camila Moradia homenageou. Quando questionada sobre seu trabalho e o que mudou depois dos tempos do Gabinete de Crise, Lana diz: “Eu quero que as pessoas saibam que o que eu faço é uma parte muito importante para que minhas companheiras e meus companheiros tenham tranquilidade pra executar bem as suas missões e responsabilidades. Eu fico muito feliz e realizada quando vejo uma ação terminar e ver a equipe e os voluntários felizes e realizados”.
Quem cuida das cuidadoras?
Camila, Renata, Lana, e tantas outras mulheres da diáspora negra trabalham incansavelmente pelo bem-estar e apoio de suas comunidades. Como podemos observar, o trabalho que desenvolvem é transformador e literalmente salva vidas. No entanto, este trabalho vital também vem com um fardo. As mulheres ativistas sofrem de problemas de saúde mental e física, como ansiedade e fadiga, e enfrentam constantes ameaças de morte. Camila Santos ganhou o Prêmio Front Line Defenders, mas a mãe solteira de três filhos ainda luta para encontrar trabalho remunerado. Durante as atividades do Gabinete de Crise, Renata Trajano foi hospitalizada várias vezes devido a problemas na coluna. Ela e Camila foram às redes sociais para discutir o quanto estavam exaustas e pedir que a comunidade exigisse ajuda do governo. Lana também se queixou de exaustão, do peso de muita responsabilidade e falta de cuidado. Não é que elas queiram ser super elogiadas ou colocadas em um pedestal. Pelo contrário, elas querem melhorias que alcancem suas comunidades, sem que para isso precisem comprometer sua saúde.
Por isso é importante que mulheres negras sejam reconhecidas como sujeitos políticos essenciais, pois toda uma população se beneficia de suas ações. Esse reconhecimento pode ser na forma de assistência à saúde, assistência social ou patrocínio, mas também na forma de políticas públicas que lhes permitam cuidar de si. Afinal, como Angela Davis diz: “Quando a mulher negra se move, toda a estrutura da sociedade se move com ela”.
Axé. ✹
Ana Carolina Assumpção (LLILAS MA 2021) é jornalista e doutoranda no Teresa Lozano Long Institute of Latin American Studies (LLILAS), The University of Texas at Austin. Seu trabalho se concentra em estudos geopolíticos raciais e feministas, especificamente coletivos comunitários e organizações de mulheres negras nas favelas do Rio de Janeiro, Brasil.