Por ANA CAROLINA ASSUMPÇÃO e ANA LUIZA BIAZETO
Antes de ser um tema acadêmico, o feminismo negro é uma causa, é uma luta, e é uma forma de insurgência contra toda a opressão que as mulheres negras sofrem na sociedade.
— Sueli Carneiro
SER UM ESTUDANTE de pós-graduação não é fácil, especialmente em um programa de prestígio como o Instituto Teresa Lozano Long de Estudos Latino-Americanos (LLILAS) da Universidade do Texas em Austin (UT). Na primavera de 2023, nós, as autoras, junto com outros estudantes brasileiros, estávamos falando sobre os desafios da academia com a Dra. Christen Smith, nossa orientadora, quando ela disse: “Tenho um presente para vocês”. O presente era a Dra. Sueli Carneiro, que viria para o LLILAS como Professora Visitante Tinker no outono de 2023. A notícia nos surpreendeu e muito nos animou.
Por décadas, Sueli Carneiro esteve na linha de frente de profundas transformações políticas no Brasil, como uma das mais importantes intelectuais e feministas negras do mundo. Seu ativismo abrange tanto teoria quanto ação. Seu trabalho, disseminado em estudos e publicações, combina escrita filosófica e teórica com poderosas mensagens políticas em apoio aos direitos das mulheres e da população negra.
Oferecemos este artigo como um testamento das contribuições de Sueli Carneiro para articular e elevar o feminismo negro, para fazer a conexão essencial e holística entre o que é intelectual e o que é ativista. Como Ana Carolina Assumpção teve a oportunidade de dizer-lhe, “ela está na minha bibliografia há mais de uma década, mesmo antes de eu vir para a pós-graduação. Somos suas alunas há muito tempo”.
“As expectativas eram altas”, relembra a doutoranda do LLILAS Denise Braz. “Estávamos prestes a aprender sobre o feminismo negro em formação por uma das principais protagonistas do movimento no Brasil. Estávamos ansiosas para aprender e para validar os pensamentos e teorias que temos articulado em nossa pesquisa”.
Uma vida de ativismo
Doutora em Educação e Filosofia pela Universidade de São Paulo, Sueli Carneiro é reconhecida internacionalmente por suas décadas de ativismo. Ela foi homenageada com o prêmio Liberté-Egalité-Fraternité do governo francês em 1998 e o Prêmio Kalman pelo Conjunto da Obra da Latin American Studies Association (LASA) em 2021. Este último reconheceu sua “vasta produção acadêmica focada nas relações raciais e de gênero na sociedade brasileira, bem como seu destacado comprometimento com o campo das políticas educacionais”. Os prêmios reconhecem o ativismo de Sueli, por um lado, e as contribuições acadêmicas, por outro, simbolizando sua ligação entre os dois, embora ela afirme que sempre foi uma ativista antes de se tornar uma intelectual.
Sueli Carneiro entendeu os impactos do racismo e do sexismo na vida das mulheres desde jovem, e isso a conectou a outras que também estavam pensando e agindo para melhorar a condição feminina, especialmente a das negras. Enquanto trabalhava com o governo brasileiro em 1985 para promover os direitos das mulheres, ela foi coautora de Mulher Negra: Política Governamental e a Mulher, a primeira publicação no Brasil a apresentar evidências quantitativas de desigualdades e disparidades entre mulheres negras e brancas. A jornalista Bianca Santana (autora da biografia de Sueli Carneiro), afirma que esse livro, em coautoria com Thereza Santos e Albertina Gordo de Oliveira, “inaugurou a área de estudos de raça e gênero e orientou o debate racial sobre feminismo, tanto no Brasil quanto na América Latina”. Durante o mesmo período, Sueli trabalhou com o Movimento de Mulheres do Brasil, que elaborou proposições posteriormente incorporadas à nova constituição do Brasil, promulgada em 1988. Oitenta por cento de suas sugestões foram incluídas na constituição.
Além dessas contribuições, o Movimento de Mulheres Brasileiras desempenhou um papel vital na tomada de decisões políticas, influenciando políticas públicas sobre igualdade de gênero e combatendo a discriminação contra as mulheres. A defesa do movimento, por exemplo, levou a violência doméstica a ser designada como crime, em oposição a uma questão privada. Isso levou o governo a criar agências policiais conhecidas como Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs).
O trabalho de Sueli Carneiro com o movimento de mulheres, e sua proximidade com o movimento negro do Brasil, a levaram a cofundar o Geledés Instituto da Mulher Negra em 1988. Localizado na cidade de São Paulo, o Geledés é uma das organizações mais importantes que lidam com justiça racial no Brasil. Um de seus programas pioneiros, o SOS Racismo, oferece assistência jurídica a vítimas de discriminação racial. Essa iniciativa levou o judiciário brasileiro a categorizar o racismo como uma violação dos direitos humanos. Desde seu lançamento, o Geledés tem estado na vanguarda do movimento feminista negro do Brasil. No entanto, sua importância se estende muito além das fronteiras do Brasil, como exemplificado pela participação do grupo na Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância de 2001 em Durban, África do Sul.
Em aula na UT, a Sueli enfatizou a importância histórica de Durban como um marco na luta contra o racismo global. “Durban provocou a construção de um novo conceito, os afrodescendentes, que passou a fazer parte das Nações Unidas”, ela explicou. A conferência de Durban em si foi em parte resultado da Marcha Zumbi dos Palmares de 1995 em Brasília, que levou cerca de 30.000 pessoas às ruas da capital brasileira para protestar contra o racismo. Naquela ocasião, o então presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu as representantes da marcha, incluindo a equipe Geledés, e concordou em estabelecer o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. Ela vê a marcha Zumbi como um evento unificador fundamental no movimento negro do Brasil, que estabeleceu uma agenda antirracista mais robusta entre as organizações negras no país.
Após a marcha, Geledés estabeleceu alianças estratégicas com grupos de mulheres negras dentro e fora do Brasil para trabalharem juntas em Durban. Mulheres negras brasileiras lideraram a aliança Afro-Latino-Americana e Caribenha, que apresentou políticas públicas e outras propostas na Declaração e Programa de Ação de Durban.1 “Foram as mulheres negras brasileiras que inscreveram o movimento negro do [nosso] país em uma perspectiva internacionalista”, explicou Sueli. Em sua aula, ela enfatizou a importância crucial de Durban para a inclusão da luta contra o racismo na agenda global e para a criação de estratégias coletivas de enfrentamento, como o empoderamento econômico.
Saberes insurgentes e o dispositivo de racialidade
Para nós, tornar-nos bibliografia é uma conquista para esta nova geração.
—Sueli Carneiro
Um dos objetivos da aula Epistemologias Feministas Negras era propor um foco na produção de conhecimento do Sul Global e em saberes insurgentes. As leituras e discussões em sala de aula visavam à curadoria do “pensamento feminista negro como projeto epistemológico” em diálogo com a vida de Sueli Carneiro, e valorizando produção intelectual de mulheres feministas negras.
No primeiro dia de aula, a professora reforçou a ideia de pensar e “fazer” o feminismo negro, o que implica levar em conta as contribuições das mulheres negras na história, antes mesmo do termo “feminismo negro” ser criado. Em suas palavras, o movimento deve “alimentar e revitalizar uma cultura ancestral”. Para ilustrar suas ponderações, ela se dedicou a fazer uma retrospectiva do feminismo negro no Brasil já nas primeiras aulas. Enfatizando a natureza coletiva desse trabalho, ela compartilhou as contribuições significativas de outras mulheres negras, em particular Lélia Gonzalez, uma antropóloga, filósofa, professora, intelectual e ativista brasileira que Sueli vê como pioneira na construção do feminismo negro nas Américas.
Lélia Gonzalez é crucial para entender as mulheres negras no Brasil, na América Latina e no mundo. Ela foi a primeira a confrontar o apagamento destas pelo feminismo branco e ensinou Sueli a pensar sobre as complexidades de raça, gênero e classe que permeiam a realidade de mulheres negras. Junto com a política Benedita da Silva, Gonzalez foi fundamental na formulação de políticas públicas em áreas críticas, como saúde pública, que mudariam a vida das mulheres negras brasileiras. Ela reitera que o exemplo de liderança de Gonzales encorajou e “moldou o movimento negro”.
Sueli Carneiro enfatizou a importância das universidades como espaços estratégicos, e como o conhecimento produzido por mulheres negras deve ser insurgente, questionador e subversor das estruturas tradicionais de poder e conhecimento. Aqueles saberes tradicionais, ou formas de pensar, ela diz, negaram a inteligência dos negros: “eles negam nossa capacidade cognitiva, negam nossas contribuições para a humanidade — é isso que eu chamo de epistemicídio.”2
Os estudantes universitários não devem ser “meros reprodutores da mentalidade que serviu para nossa opressão. Se a gente não usar o espaço da universidade para destituir esse tipo de saberes que foram produzidos sobre nós, pra que serve a gente estar aqui?”3
A professora destacou a urgência e os desafios que as mulheres desta nova geração enfrentam, enfatizando “a necessidade de transformar a polifonia que cerca o feminismo negro em uma agenda pública que promova políticas públicas efetivas”. Tais políticas devem ter como objetivo mudar a condição das mulheres negras, tanto dentro das universidades quanto nas ruas, garantindo que as atividades acadêmicas estejam alinhadas com as realidades e necessidades práticas.
Outra parte do curso centrou-se no livro de Sueli Carneiro de 2003, Dispositivo de Racialidade, com base em sua tese de doutorado.4 Em sala de aula e no livro, a professora dialoga com os filósofos Michel Foucault e Charles Mills, cunhando o termo dispositivo de racialidade (DR) para explicar as relações raciais no Brasil através das lentes da filosofia. De acordo com ela, o DR é formado por um contrato que a sociedade pactua e usa para negar a existência negra; por outro lado, esse contrato também produz resistência e conhecimento insurgente. Ela observa que, embora toda pessoa branca seja beneficiária do racismo, nem todos são signatários do contrato racial que o sustenta. Sueli Carneiro afirma que o contraponto ao dispositivo de racialidade deve ser alcançado por meio do trabalho coletivo.
Na sala de aula: vozes de ativismo, generosidade e cuidado
É como se ela tivesse saído das páginas de um livro que — como mulheres negras, ativistas e acadêmicas — sempre estudamos e buscamos inspiração.
— Ana Luiza Biazeto
Os alunos do seminário da Professora Sueli Carneiro vieram de diversas origens culturais, e de diversos departamentos da universidade. Aidan Keys nasceu nos EUA e não tem laços de sangue com o Brasil. Doutoranda no Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana (AADS), ela estuda o feminismo negro brasileiro, e Sueli figurou com destaque em sua tese de mestrado. Aidan destacou a importância de disseminar o conhecimento de intelectuais negros brasileiros em todo o mundo. “Sueli Carneiro usa um método científico para dissecar o racismo no Brasil. O interesse não brasileiro na racialidade brasileira frequentemente critica o ‘fracasso’ dos negros brasileiros em se mobilizar. Claramente, quando ouvimos os estudos sobre mulheres negras, vemos que isso não é verdade”.
Thaís Rocha, doutoranda do Departamento de Espanhol e Português, ecoou a importância de referenciar o trabalho de intelectuais, ativistas e acadêmicas negras. “Aprendo com elas como fortalecer essa luta coletiva pelo fim do genocídio negro, recuperação e reconstrução do que a história nos negou, semeando caminhos de (re)existência e resistência antirracista para as próximas gerações.”
“Foi um período de aprendizado intenso”, concluiu a doutoranda Eliane Nascimento (AADS). “A aula da Sueli foi a realização de um sonho — de vê-la pessoalmente e observá-la em sua plenitude como ser humano: uma intelectual magnífica, gentil, dedicada, atenciosa e sensível. Suas aulas e reuniões foram decisivas e úteis para despertar insights para minha pesquisa e também para navegar na academia e na vida. Sou grata por esta oportunidade única”.
Para nós, coautoras deste artigo, a ênfase de Sueli Carneiro na produção ancestral e coletiva de conhecimento ressoa fortemente. Como professora, ela sempre foi provocativa: “O que você vai fazer com seu conhecimento?” Em outras palavras, ela sempre reforça que além de aprender com as feministas negras brasileiras que nos antecederam, o conhecimento exige ação prática.
Embora as discussões em sala de aula tratassem de temas sérios como violência e injustiça, Sueli Carneiro encheu a sala de aula de generosidade, compartilhando o conhecimento que adquiriu na linha de frente. Por isso, a premissa de usar o feminismo como ferramenta política também deve estar conectada ao bem-estar. Isso porque precisamos estar vivos e saudáveis para continuar o trabalho.
Em março de 2024, Sueli Carneiro foi recebida com uma ovação de pé antes de discursar no Fórum Permanente da ONU sobre Pessoas de Descendência Africana. Agora, mais do que nunca, nos juntamos a essa ovação. Ela merece tudo isso e muito mais.
Axé. ✹
Ana Carolina Assumpção (LLILAS MA, 2021) é jornalista e doutoranda no LLILAS. Seu trabalho se concentra em estudos geopolíticos raciais e feministas, especificamente em coletivos comunitários e organizações de mulheres negras nas favelas do Rio.
Ana Luiza Biazeto é jornalista e doutoranda no LLILAS. Possui mestrado em serviço social (2010) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Seu trabalho se concentra em raça e gênero no sistema prisional brasileiro, especificamente nas famílias de mulheres encarceradas em São Paulo.
Notas
- World Conference against Racial Discrimination, Xenophobia, and Related Intolerance, Declaration and Programme of Action (Nova York: Nações Unidas, 2002), disponível em ohchr.org/sites/default/files/Documents/Publications/Durban_text_en.pdf. Veja também a atualização de 2021 da ONU sobre a Declaração, publicada no vigésimo aniversário do documento: un.org/en/fight-racism/background/durban-declaration-and-programme-of-action .
- Sueli Carneiro, conversa gravada com Christen Smith e Susanna Sharpe, 9 de novembro de 2024.
- Ibidem
- Sueli Carneiro, Dispositivo de Racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser [Raciality Device: The Construction of the Other as Non-Being Is the Foundation of Being], (Zahar, 2023).